INSPIRAÇÕES DO POETA

15 de dez. de 2010

O Tempo Nu




Pega-me pelos cabelos, de repente, o espelho que passa por mim, como um vento forte e arteiro que descabela e levanta saia de mulher distraída. Estava despida e me estranhei. Olhei-me e tudo era tão original, como se aquele corpo fosse outro, um outro que ignorava. Dei-me conta de que há muito não me via. Ausente dos sentidos, apenas passava pelos reflexos, com uma trivialidade de quem acorda quando não morre no sonho.
É que tinha colado uma imagem antiga no vidro, de carne lisa e sem rastros, como botão de rosa que nasce a iludir o jardim.
Havia uma invasão de pele, carnes e ossos, que me queimava em pudores, logo eu que tantas vezes me aventurei inflamando tais dominações, naquele instante me vigiei. Olhei-me novamente, mais atenta e perecível. Tive receio do que eu era, pois sempre convivi com o que pensei ser.
Não estava apenas despida, mas completamente nua de mim, dos outros, dos delírios, da vida e da morte. Estava nua em pessoa e é aflitiva essa nudez solitária!
Não saber-se pelo olhar do desejo ou do amor, que o outro forja, belo e perfeito, me desordenou feito um bando de pássaros ao som da espingarda fatal.
Estava crua e teria que me mastigar, pois se engolisse morreria asfixiada por mim, que sempre gostei da vida, salgada e atrevida, como eu. Dei-me a contemplar os primeiros rabiscos, como um exercício, até o entendimento, não total, mas aquietante.
Havia na raiz dos cabelos tingidos, o branco. Lembrei-me do primeiro fio, ainda tão menina, quando navegava pirata sobre a prancha, a desvendar tesouros, vagas!
No rosto, algumas rugas desenhavam aspirações concretizadas e outras não; o mar que tanto me salvou; o sol que me castigou com sardas por teimosia; a boemia de Ipanema e do Leblon onde o violão Bossava Nova mente; os conselhos da mãe que não dormia; os namoros no Arpoador com lua e sem medo; o primeiro casamento até que a morte nos separe e que morreu antes de nós; a primeira filha que me ensinou a crescer, o segundo casamento até que a vida nos separe e assim continuamos separados e vivendo; a segunda filha que me ensinou a crescer ainda mais; as mortes; os renascimentos; os abismos.
Entendi meus seios, não mais rijos e sem corpos estranhos, que produziram desejos profanos e leite sagrado, mas ainda róseos. Sorri aceita, por sabê-los sãos, ainda que desajeitados sob os tecidos. Seios plebeus que escondem coração anarquista, mas amável. Ah, coração intrépido, meu comboio!
Com as mãos, as mesmas que transpiram poesia, por fim acolhi meu ventre, me pareceu um gesto repetido e possível, como é possível todo o mistério primitivo impregnado nele. Entre os dedos, mais que uma saliência epidérmica, um órgão, um templo de pecado e santidade; de júbilo e aflição, se ressentia ao toque. De certo, que havia uma pequena camada marginal de exageros líquidos e sólidos, por conseqüência dos anos e de alguns pecados capitais, além de duas cicatrizes sobrepostas, mas o sentia, ventre bendito, amanhecido na memória de cópulas, gozos e maternidade.
Estava diante da mulher, com suas terras revolvidas e rios de corredeiras, que sou. Selvagem fêmea, sem portas e janelas trancadas, a reconhecer-me madura, com uma beleza silenciosa, de sabedoria incrustada nas marcas que o tempo entalhou. Dádivas de um efervescente viver.
O que sou? Grito ao espelho: Vento vadio nesse tempo nu.

18 comentários:

Antonio José Rodrigues disse...

E agora, Ira? Parece-me que lavou a alma, então, em vez de ficar mastigando o pretérito, recomece, mulher! Beijos de nostalgia

Unknown disse...

cada descripcao... cada letra diz y mostra uma escencia pura un ser verdadeiro real a vida que asume y vive tenaz forte y firme...

Lindo poema minha querida amiga
saludos
abracos
otima semana

Lua Nova disse...

Ainda não consegui respirar... Karaka... esse me arrancou lágrimas e a emoção ainda tá parada aqui no peito. Um dos textos mais lindos que vc já fez e olha que gosto de todos!
Nesse vc se superou. Ele doeu manso na alma, ele se encaixou na consciência de mim mesma e sacudiu minha calma que tentava me fazer atemporal e resoluta.
Danada! Ow mulher raçuda! Se fosse minha praia, me apaixonava por vc.
Beijokas e creia, gosto muito dessa tua alma intensa!!!

Lua Nova disse...

Vc viu sua cara bonita lá no Chocolate??? Ficou bonito, vai ver. Tá no sidebar.

Iram Matias disse...

quem vc é? grita o espelho: vc é uma mulher de alma sensivel que se envolve de palavras que envolve a gente numa leitura gostosa e sem pressa de acabar. Lindo, como sempre. Parabens!

Beijos

Iram

Jorge Pimenta disse...

querida amiga,
quando aqui aporto penso que a tua escrita atingiu um patamar de maturidade que não pode mais surpreender-me. mas, invariavelmente, qual atleta olímpico que retira tempo ao seu anterior recorde, elevas a fasquia a uma medida que o comum dos mortais não ousa sequer prever possível, quanto mais almejar tocar? esta descrição lírica do temp(l)o do corpo amansa o pecado e agita a candura. é um bailado que beatifica o corpo que se fez carne pela alma; é uma canção que enfeitiça os sentidos que anunciam o desejo pela primordialidade. arrebatador, sem dúvida!
um beijo ainda com o olhar trémulo!
p.s. a imagem aquele que "acorda quando não morre no sonho" vale toda a poesia.
p.p.s. a vanessa dizia, lá no viagens de luz e sombra, qualquer coisa como "Sonhos não se escondem, estão ali para nos lembrar da impossibilidade."

Franck disse...

Desnudar-se, para nós mesmos, faz um bem danado!
Bjs*

Lila disse...

Amada amiga Loiruda...

Forte suave
Mulher menina
Inteira dividida
Feroz meiga
Morena loira
Santa pecadora
Mãe filha
Amiga AMIGA.

Sabemos nós, o caminho tortuoso e sombrio que atravessamos...o mundo é assim, essa louca dualidade, onde aprendemos e apreendemos.
Acredito em mim e em ti.
Sabemos nós...
Amo.
Bjs meus !

Carolina disse...

Oi Ira! belo e comovente texto da sabedoria de anos vividos. Você é uma mulher forte, sensível e apaixonada.

Espero que você já está melhor.

Leblon: beleza que é! Prazer e diversão.
Bjsss.

Anônimo disse...

Que dizer?! Boa Quinta, Ira. Grande bjo. Jacson Faller.

Unknown disse...

mergulho, mergulho

maravilha,


beijo

AC disse...

Ira,
É um privilégio partilhar a forma como disseca sentires, como enfrenta transformações, como apanha o barco de todas as mudanças. A sua prosa é genuína, incisiva, mas sempre com a cobertura da visão dos autênticos...
Tudo de bom para si!

beijo :)

Dilmar Gomes disse...

Amiga Ira, você é uma excelente escritora.
Um abraço.

Marcelo R. Rezende disse...

Tem dias que acontece: a gente olha pro espelho e pensa, quem é esse?
E a gente descobre que somos nós, duma forma que a gente não via, mas estava lá. Você se descobriu linda, Ira. Um corpo que te trouxe uma vida, uma biografia linda, um encontro louco consigo. Adoro.


Beijo do filhote que está com saudade.

Suzana Guimarães disse...

Ira,

Fiquei emocionada com a tua nudez.

Beijos,

Suzana

2edoissao5 disse...

eu estou de mal com o espelho, nao vejo poesia nele...rs

beijo!

► JOTA ENE ◄ disse...

ººº
Ai moça, esta escrita linda que enfeitiça quem lê ... te adoro ler.

Bjkas e bom domingo !!!

Adriano Villa disse...

Olá, como vai? O que posso dizer de seu texto... Que me deixou sem palavras? Que pude sentir diversos sentimentos e ao mesmo tempo ver imagens de uma garota procurando o que tem mas que acha que se perdeu... e que na verdade, tudo ainda esta ali, mas com novas palavras escritas pelo tempo que vivemos... ainda estou pensando ao respeito, achei fantástico e muito bom de se ler... curti a sua forma... sensível e envolvente. bjs